«‘Parece que jogas umas coisas, ó pá. Mostra lá para eu ver.’ Folheei rapidamente o catálogo: toques no joelho, picanços a acertar neste ou naquele degrau das escadas, passes de calcanhar, bola travada, roda sobre o pé esquerdo, fintas aos vasos.»
Memórias de um Craque, de Fernando Assis Pacheco, Assírio & Alvim, organização de Abel Barros Baptista, posfácio de Manuel António Pina, 112 páginas
Assis, o escrítico, anuncia assim em tom sussurrado o nascimento de Assis, o craque. Recuamos à Coimbra dos anos 40 para trinta curtos e intensos episódios da infância de um desportista olímpico, talentoso nas várias modalidades de tiro com fisga, futebol de botões, corrida de guarda-chuva nos carris, lançamento de tijolo, hóquei em patins e a modalidade-rainha da infância, futebol de rua. Recebido o passe, não há por onde hesitar. A metáfora é um arrepio, mas aplica-se como cromo na caderneta. Fernando Assis Pacheco foi, de facto, um craque, mas por ter trazido o catálogo completo do jogador juvenil, sobretudo a finta com a bola travada, para a escrita adulta - toda ela, prosa ou poesia, em livro ou jornal. É óbvia a marca da oralidade nos diálogos, no ritmo sincopado da frase (e da ironia nela contida), no vocabulário oriundo de todas as latitudes e tempos (do inglês traduzido foneticamente ao latim como deve ser). Se tudo levaria a crer na transcrição de boa história, acontece a finta: é a escrita que conduz a mão, livre, libérrima. Assis quer que o acompanhemos na leitura, mas não resiste a arrastar-nos por complexa arquitectura. Gere como ninguém as respirações, os silêncios, os não ditos.
O jogo repete-se, apenas na exacta medida em que é sempre novo no mesmo, para a narrativa e a poesia ou, como Manuel António Pina (mestre na matéria) lembra no posfácio, para a memória e a ficção. Enquanto vão sendo cumpridas as regras que nos prendem ao desenrolar da anedota, explode a finta: um lirismo cru que nos desperta a vertigem. É enorme o valor da palavra, seu peso e som. A imagem do desafio vale ainda para este memorialismo que assenta no concreto, no exacto, mas, finta ainda, se transfigura em construção colorida, restos de mentira que torna as figuras que conta mais verdadeiras que as de verdade. O craque tinha grande jeito a formar equipas, digo, a detectar personagens. E a infância do craque, cheia de nomes de jogadores míticos de tão reais, é de brincar. Entra agora em campo a auto-ironia. O craque olha-se com ternura, mas não condescende.
Claro, também fala de futebol, dentro e fora das quatro linhas, pelo que não ficará mal dizer que estas crónicas foram disputadas no terreno do «Record», em 1972, e são do melhor que por cá se jogou neste campo, «ervado», relvado ou pelado.
(Newsletter da Assírio & Alvim)
segunda-feira, outubro 02, 2006
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