sexta-feira, abril 13, 2007

SÓCRATES, SEGUNDO VASCO PULIDO VALENTE


O exemplo de Sócrates
Vasco Pulido Valente

Jornal PÚBLICO, 13/04/2007

José Sócrates faz parte daquela geração que já "nasceu para a política". A política (no PSD ou, depois, sob o patrocínio de Guterres) foi desde o princípio a sua única e autêntica carreira. O resto, a educação formal entrou por hábito, talvez por prudência e manifestamente pela necessidade de um estatuto "respeitável", que a política ainda hoje não dispensa. É hipócrita dizer, como se disse e ele próprio disse, que Portugal aceitaria sem reagir um primeiro-ministro com o secundário ou até com o título obscuro de "engenheiro técnico". Não aceitaria. E Sócrates, como é natural, tentou arranjar uma licenciatura para o que desse e viesse. Não o preocupou muito (e porque haveria de o preocupar?) se o ISEL e a Universidade Independente lhe dariam uma péssima ou excelente formação profissional. Para o que ele queria da vida, só interessava o papel.

Não lhe ocorreu com certeza na altura que o papel, só por si, valia pouco. Que a sua origem contava. Que a maneira como o tinha adquirido contava. Ou que as formalidades da sua concessão também contavam. Para um estranho à academia, coleccionar 55 cadeiras presumivelmente basta. Mas 55 cadeiras são 55 cadeiras. Não são um curso (no sentido literal de "caminho") que gradualmente transmite um método e treina uma cabeça. Nada mais lógico do que este engano. Sócrates tirou o seu verdadeiro curso no partido, na Assembleia da República, no Governo e na RTP (com Santana Lopes): e a campanha para secretário-geral do PS acabou, na prática, por ser uma espécie de doutoramento. Aqui houve ordem, desígnio, progressão; e "aproveitamento". Não no ISEL e na Universidade Independente.

Quanto à substância do "caso" em litígio, não é possível examinar uma a uma as peripécias que levaram à licenciatura de Sócrates. Só é possível, e além disso indispensável, deixar claro, cristalinamente claro, que nenhum estudante deve em circunstância alguma seguir o exemplo dele: um exemplo que, segundo Sócrates, revela "nobreza de carácter" e que anteontem ofereceu com "orgulho" aos portugueses. Ninguém que pretende genuinamente aprender anda a saltar de escola em escola, ou escolhe uma universidade porque "é mais perto", ou pede equivalências sob palavra, ou aceita o mesmo professor no mesmo ano para quatro cadeiras, ou se importa em especial com títulos. Sócrates simboliza tudo o que está errado no ensino que por aí existe. Como o acabrunhante espectáculo de quarta-feira, aliás, provou.

1 comentário:

rui disse...

O Vasco Pulido Valente quando escreveu isto, claro que está esquecido do que escreveu há uns anos atrás num artigo autobiográfico publicado na Kapa e depois em livro, sobre a forma como decorreram os seus próprios estudos.
Tudo bem que ele é um intelectual de valor, e deve dar-se o desconto devido ao tom auto-depreciativo desse artigo, mas mesmo assim, o acabrunhante aqui é ser ele, precisamente, a alimentar este espectáculo moralista que já começa a nausear um bocadinho, porque não é mais do que refocilar colectivo numa realidade - o folhetim da licenciatura do Sócrates - que decorre do espírito de "entrada na modernidade" da era Cavaco, com os seus apelos ao "sucesso".
Como de costume perdemos, colectivamente, uma oportunidade soberana e agora andamos com discussões mesquinhas de comadres com o único objectivo não de resolver um problema mas de queimar indivíduos ao bom espírito tablóide.
Meu Deus, não repugna já o paleio hipócrita do "não quero saber se ele é licenciado, quero é saber a verdade?". Ao menos os americanos com o Clinton sempre foram perversos a sério, andaram obcecados meia década com uma história de sexo. E os "moralistas" de então, depois de se lhes terem descoberto também os podres, chegaram ao Poder e lançaram o País numa guerra de ocupação criminosa e catastróficas com consequências para todo o mundo. Uma coisa grandiosa, portanto.
Agora nós, é cenas de sacristia, intrigas de paróquia, às voltas com uma porcaria de um diploma igual a tantos milhares que se tiraram nas últimas décadas. São estas as questões fundamentais que queremos ver discutidas no País? Lérias... o pessoal quer é telenovelas.