Investigação
José Sócrates concluiu o curso na Universidade Independente num domingo. O processo académico é bizarro
As sombras de Sócrates
As notas de quatro exames finais do primeiro-ministro - duas provas escritas e duas orais - foram lançadas no mesmo dia de Agosto, para completar a sua licenciatura em Engenharia Civil, na Universidade Independente. As duas cadeiras foram dadas pelo mesmo professor que, aliás, leccionou mais duas disciplinas finais do curso. O diploma data de 8 de Setembro de 1996. Curiosamente, um domingo.
Estas são algumas das conclusões a tirar dos documentos apresentados ao Expresso sobre o processo do aluno José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, na Independente. A confusão é grande e aumenta à medida que se vão ouvindo intervenientes neste processo.
António José Morais assume ter sido responsável por quatro das cinco cadeiras que o primeiro-ministro completou naquela escola. “Dei-lhe aulas”, juntamente com o assistente Fernando Guterres e o monitor Silvino Alves. Disse ainda que era “responsável da comissão científica” e que, nessa qualidade, aprovou o plano de estudos delineado para aquele aluno. “A UnI foi muito exigente, porque o reitor queria que os alunos pagassem propinas, obrigando-os mesmo a ter currículo a mais”. O reitor, por seu lado, alegou, em carta enviada a 12 de Setembro de 95 ao então secretário de Estado, que a “comissão científica da Faculdade de Tecnologias” exigia que completasse quatro cadeiras, que discriminou. A carta apenas está assinada pelo próprio reitor, Luís Arouca.
Estas declarações são contraditadas por Frederico Oliveira Pinto, que diz ter sido o primeiro presidente do conselho científico da Independente e, na altura, professor de todas as cadeiras de Cálculo das licenciaturas de Engenharia. Garantiu ao Expresso nunca ter visto José Sócrates naquela escola, “a não ser muitos anos mais tarde, durante uma oração de sapiência em que estava na assistência”.
“Foi tudo feito com o meu total desconhecimento”, acrescenta, referindo-se ao processo de licenciatura, garantindo ainda que o plano de equivalências e de estudos de Sócrates não foi submetido a apreciação de qualquer órgão académico. “O conselho científico só foi criado em meados de 97”, já o actual primeiro-ministro tinha terminado o curso.
Por lei, as universidades privadas têm de ter “obrigatoriamente” conselho científico. “Mas, mesmo depois de constituído o conselho, o reitor nunca permitiu que nos pronunciássemos sobre qualquer processo de equivalências, apesar de esta ser uma exigência legal”, conclui Oliveira Pinto.
Pautas destruídas
Sócrates entrou na Independente em finais de 1995, para completar uma licenciatura em Engenharia Civil, iniciada muitos anos antes no Instituto Politécnico de Coimbra (quatro anos) e, seguidamente, no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (um ano). Terá feito cinco cadeiras na UnI para receber o diploma: Análise de Estruturas; Betão Armado e Pré-Esforçado (anuais); Estruturas Especiais; Projecto e Dissertação (semestrais) e ainda Inglês Técnico (anual).
As quatro primeiras foram leccionadas por António José Morais, conforme consta nos documentos consultados pelo Expresso, onde só figura o nome de José Sócrates, sem número de aluno, ano lectivo e turma. Morais explica: “Nas verdadeiras pautas figura o nome de todos os alunos que fizeram o mesmo exame. Mas essas são destruídas passado uns tempos”. O facto de o registo de dois exames - provas escritas e orais - terem a mesma data é, igualmente, desvalorizado. A universidade “não tinha livro de termos, substituindo tudo por um dossiê individual a que chamava nota de pauta”. “Os exames foram feitos em dias diferentes e sempre com outros alunos”, afirma Morais.
A única cadeira que não foi da responsabilidade de António Morais foi dada por Luís Arouca, reitor da instituição até ontem. Curiosamente, o professor a quem tinha sido atribuída na Independente a regência desta disciplina - Inglês Técnico - também disse ao Expresso nunca ter visto José Sócrates na universidade. “Nunca lhe dei nenhuma aula e nunca lhe fiz qualquer avaliação”.
Secretaria aberta ao domingo
Carlos Gomes Pereira e Alberto Santos assumem ter sido colegas de curso do primeiro-ministro em 1996. “Éramos sete alunos, mas nem todos tínhamos as mesmas cadeiras, uma vez que éramos provenientes de Politécnicos diferentes”, disse Alberto Santos. “Naturalmente, tínhamos aulas juntos e fizemos exames juntos. Lembro-me de Sócrates lá estar, apesar de eu não ter sido muito assíduo”, explicou Carlos Pereira.
No processo de Sócrates existente na Independente o certificado de habilitações surge com data posterior à da sua matrícula. Isso ficar-se-á a dever ao facto de as notas não terem sido lançadas em tempo útil pelo ISEL.
O diploma final de curso da UnI é assinado pelo reitor e pela sua filha - chefe dos serviços administrativos da Universidade Independente - no dia 8 de Setembro de 1996, ou seja um domingo, como o Expresso confirmou. Mas, para o professor António Morais, tal facto “não é estranho. Nas universidades privadas, muitas vezes trabalha-se ao domingo”.
Muitas das dúvidas levantadas durante a investigação jornalística ao processo de Licenciatura de José Sócrates podiam ser respondidas pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior. De acordo com os Estatutos do Ensino Superior Particular e Cooperativo é a essa entidade que compete “fiscalizar o cumprimento da lei”. Lei essa que “obriga” as universidades a terem conselho científico e livros de termos. Mais ainda: obriga à entrega anual de todos os processos académicos dos estudantes matriculados naqueles estabelecimentos de ensino, nomeadamente com nomes de alunos, professores, cadeiras, assim como horários e planos de curso.
Até ao fecho da edição o Ministério não teve possibilidade de esclarecer estas matérias. Também o primeiro-ministro, José Sócrates, ou o seu Gabinete preferiram não fazer qualquer comentário.
Os recados para São Bento Os primeiros a chamar a atenção para a licenciatura do primeiro-ministro ter sido concluída na Universidade Independente foram, precisamente, os responsáveis daquela escola. Mais: fizeram questão de o afirmar publicamente logo após ter estalado a crise de gestão da UnI, a 26 de Fevereiro. Luís Arouca foi o primeiro a falar. No dia 28, dá uma pequena entrevista ao jornal ‘24 Horas’ para garantir que se lembrava muito bem do aluno José Sócrates. “O nosso primeiro-ministro terminou o curso com 16 valores. Talvez nunca tenha ouvido Beethoven ou lido Goethe, mas é um tipo brilhante, de rápido raciocínio e inteligência prática”, escreve o jornal. O primeiro erro surge aqui. Nos documentos da UnI sobre Sócrates a nota final de licenciatura é de 14 valores. Mas há mais. O então reitor da UnI faz questão de lembrar que foi professor de Inglês Técnico de Sócrates e que ficou “surpreendido” na oral que lhe fez. Outro lapso: o regente da cadeira era outro docente. Ou ,talvez, um recado. Finalmente, lembra as cadeiras onde o PM se destacou: Planeamento e Política do Ambiente, onde revelou “grande traquejo político”. Curiosamente, estas cadeiras não existiam em Engenharia Civil e não foram feitas por Sócrates. Antes destas declarações, o reitor tinha levantado suspeitas sobre a validade da licenciatura em Direito de Amadeu Lima Carvalho - outro dos sócios da Sides, proprietária da UnI -, com quem entrou em litígio. Lima de Carvalho acabaria por ser, esta semana, detido preventivamente por suspeita de vários crimes, entre os quais, tal como o reitor, de falsificação de documento Em declarações ao Expresso, no início de Março, e também a várias televisões, Amadeu respondia de forma peremptória ao reitor: “o meu diploma é tão verdadeiro como o do senhor primeiro-ministro”.
H.F., M.C. e R.P.L.
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Os documentos que o Expresso viu Os únicos documentos apresentados como ‘o dossiê Sócrates’ na Universidade Independente são um conjunto de papéis soltos, sem numeração nem qualquer carimbo da instituição. Foram facultados ao Expresso - depois de muita insistência e algumas desistências da parte do reitor Luís Arouca- no dia 23 de Março, à tarde, já a edição do jornal estava fechada. Aparentemente, só o reitor está na posse desta documentação. O mesmo Luís Arouca que, quarta-feira passada, seria constituído arguido por suspeita de vários crimes, entre os quais o de falsificação de documentos. O Gabinete do primeiro-ministro proibiu, mesmo, na passada terça-feira, um novo acesso do Expresso à documentação existente na reitoria da Independente. Só ontem, José Sócrates indicou o nome de dois antigos professores e permitiu o acesso a documentos do seu currículo, que reproduzimos ao lado. No entanto, recusou sempre prestar qualquer declaração sobre este assunto. O processo académico que consultámos - e que constitui, assim, o único conjunto de documentos que fazem prova da licenciatura do primeiro-ministro - foi analisado em condições «sui generis»: na reitoria de uma universidade em estado de crise interna e sempre na presença de Luís Arouca, que se fazia acompanhar por quatro homens, um dos quais nomeado há cerca de três semanas director do curso de Direito, João Álvaro Dias. Foram expressamente proibidas fotocópias. Nos documentos apresentados como prova consta apenas o nome do aluno (manuscrito), sem quaisquer referências adicionais. Apenas uma rubrica do professor da cadeira: quatro alegadamente de António Morais e outra de Luís Arouca. Duas folhas manuscritas e com algumas disciplinas quase ilegíveis, constituíam o plano de equivalências, que não tinha nem data nem assinatura. Não tivemos acesso a qualquer livro de termos - exigido por lei -, onde constariam os dados académicos dos estudantes, ou a livros de sumários, horários e lista de alunos, de professores e de disciplinas daquele curso. Alegadamente, não existem. Constavam ainda do dossiê algumas notas (cartões, faxes e uma carta) manuscritas por José Sócrates e em papel timbrado da secretaria de Estado do Ambiente. Um texto em inglês dactilografado e corrigido a vermelho foi apresentado como a prova escrita de Inglês Técnico, embora não estivesse redigido em nenhuma folha de teste da universidade. As dúvidas que o processo levanta precisam de ser esclarecidas.
M.C. e R.P.L.
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Perguntas sem resposta Ao longo de duas semanas, o Expresso contactou uma série de entidades que se recusaram a responder sobre matérias que poderiam fazer luz sobre a licenciatura do primeiro-ministro. O Gabinete do ministro da Ciência e do Ensino Superior, contactado, no dia 29 de Março, respondeu que não conseguia dar as respostas por falta de tempo: 1. Quantas inspecções foram feitas à UnI pelos serviços do MCTES? E quais os resultados? 2. Houve anteriores processos desencadeados contra a Universidade Independente? Quantos e porquê? 3. Existem queixas apresentadas contra a UnI junto desse Ministério? Quantas e por quem? 4. Qual é a lista dos docentes relativa ao curso de engenharia civil entre os anos 1994-1997 que foi apresentada ao MCTES de acordo com as obrigações previstas na lei? 5. Que disciplinas eram ministradas por cada um dos docentes? 6. Os serviços do MCTES receberam alguma informação documental sobre a licenciatura do senhor primeiro-ministro? Em caso afirmativo, pode o Expresso ter acesso a ela? À Ordem dos Engenheiros foi colocada a seguinte questão no dia 29 de Março: Um aluno que complete quatro anos no ISEC (Politécnico de Coimbra), um ano no ISEL no âmbito do CES (94/95) e depois quatro cadeiras na Uni, fica com a Licenciatura em Engenharia Civil? A Ordem alegou não ser da sua competência pronunciar-se sobre o reconhecimento dos cursos e da sua composição curricular, remetendo a questão para o MCTES. |
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