quinta-feira, novembro 02, 2006
ANTOLOGIA (#4)
AS FILARMÓNICAS, LAJES DO PICO
«[...] Mas as senhoras de leque espanhol continuam, os vestidos pretos, gargantilha de ouro ou medalhão preso ao fio, sobre ramagens de falsa seda. Sentam-se aprumadinhas nas cadeiras de praia, por cima um anúncio da Oliva, a máquina de costura tradicional que em novas provavelmente desejaram, a escutar as Bandas, fingindo tomar conta das filhas. As netas mal falam português, sem controlo, a maior parte com shorts, moda que em geral transforma os europeus em atrasados ligeiros. Junto delas estão os mais velhos e os inválidos. Outros deambulam, os da segunda geração, iguais, os vídeos pulsando a tiracolo, geométricos nas máquinas, nos calções, uns já de telemóvel. Alguns mantém dignidade, as calças escuras, a camisa branca, só não resistem ao emblema dos bonés americanos. À beira-mar, um molho de raparigas cedeu com certeza a telha das mães, vestidos, rendas e fitas, os cabelos árabes desencalhados e uns rapazinhos que pertencem à Banda atiram pedras fazendo ricochete. No Maria Luna, à entrada da rampa deslizando ao cais, sentam-se meninas, ainda bebés, ostensivamente enfeitadas, as mais carecas não escapam às bandoletas cheias de rufos. Há gelados, frituras, o restaurante da Banda Liberdade de S. Roque do Pico, garagem ou se calhar recolha dos barcos, serve linguiça com inhame, abrótea, raia frita, as lapas. Encostado à porta um rapaz bonito de baça expressão, meias de lã nos pés e as sandálias de couro cruzam na perna. Albarcas como os pastorinhos de barro do presépio, um borrego sempre às costas, por vezes ajoelhavam. De um ano para o outro, na caixa de madeira junto à barba prateada do pinheiro, cheiravam a cedro, ao musgo que enfeitava o ringue do Menino. Em direcção ao carro, estacionado no largo do convento – a igreja segue-o mostrando a pedra ríspida, veias de lava insertas – dois meninos fardados de azul escuro estão ao telefone. Um conserva ainda o clarinete e duas pautas, o outro vai discando. Revirara o boné mas o risco mantinha-se na testa suada. Riram-se imenso quando o António Pedro começou a disparar.»
(Fátima Maldonado (com António Pedro Ferreira, fotografia), Lava de Espera, Câmara Municipal das Lajes do Pico, 1996: 15
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1 comentário:
Se me dessem esse mote, "Filarmónicas", teria recuado umas dezenas de anos, e descreveria o que me vem à mente, de imediato, situando-me na Criação Velha, num coreto instalado na rampa que dá acesso à Igreja, e as "Sete Cidades" a tocar, regidas pelo meu querido e saudoso Tio Manuel Xavier.
Não parei a tarde inteira, de um lado para o outro, com o Artur Manuel. Muito garotos ainda. Comprámos rebuçados, sorvetes de pau feitos de água, acúcar e corantes ( meio escudo!), sujámos os calções todos.
Fátima Maldonado aborda épocas mais recentes. Noto-lhe algum sarcasmo na análise, de que não sou grande apreciador,agora que os tempos modernos tomaram conta de tudo, até das Filarmónicas.
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