sexta-feira, setembro 08, 2006

Rendas do Pico


Com a devida vénia, transcrevemos do site da Câmara o texto de Alberto Correia sobre a exposição Rendas do Pico. 100 anos de memória:
As rendas do Pico levam, de memória, já cem anos e pertencem a um tempo de mulher que foi, em simultâneo, suave e sofredor. Ninguém já se lembra bem desses dias do princípio, dessa distância onde assenta a construção de uma epopeia. Multiplicara-se a gente, a terra tornara-se escassa e avara para pão, fechara-se o mar também à emigração e foi nesse quadro que a renda se tornou ofício de mulher, que ganhou o jeito de um estranho ganha-pão. Nas horas quietas do dia, quando os homens lavravam terra ou rompiam roços de uma estrada, as lides domésticas acabadas, lenhas, águas do poço de maré já carregadas, ei-las, as mulheres, sentadas à janela ou no balcão, novelos de algodão sobre o regaço, uma farpa de ferro magoando às vezes sua mão, ei-las, as rendeiras. Quase sempre sentavam junto de si as suas filhas, logo aos oito anos, ainda eram meninas. À noite reuniam em longo serão, azeite de baleia ardendo na candeia antes de chegar a luz branca do candeeiro “Petromax”, contavam as histórias de vida dos antigos e cantavam.
Cresciam sobre panos brancos as rosetas que elas próprias uniam construindo toalhas de mesa ou naperons. Mais vezes as confiavam às mulheres que davam rendas a fazer, jeito de “empresárias” que governavam a produção e o mercado e eram estas quem depois mandava organizar, com leques de rosetas, as toalhas de mesa e às vezes de altar, os jogos de naperons, as blusas, as beiras de lençol ou de almofada. Obras-primas geravam-se pela sábia combinação dessas rosetas cujo nome se inventara a partir da terra, da natureza que ficava ao seu redor. Chamavam-lhes flores do alecrim, silvas, tremoço, amoras, dálias, margaridas, cachos de uvas, flor do maracujá. E havia as flores da paixão e do martírio. Mas estas nasciam só do coração.
S. Mateus, freguesia da Madalena, a Sul do Pico, foi, por natureza, o berço do ofício. Depois estendeu-se a S. João, às Ribeiras, deu a volta à ilha. As rendas vendiam-se na roda da ilha, em casas de comércio do Faial, no Continente ou seguiam para mercados do Brasil, do México, dos Estados Unidos. E as rendeiras compravam com o dinheiro que juntavam, o enxoval, se eram solteiras, mães de família ajudaram a erguer casa onde viver, compraram milho para o pão de cada dia, pagaram os estudos dos filhos, na cidade.
Ainda há quem faça rendas em S. Mateus, ainda há muitas rendeiras pela ilha. Mas as rendas já não são, como dantes, ganha-pão. São herança. São memória. Tal e qual como as canoas baleeiras. Tal e qual como os marouços, as adegas, os currais de vinha e os caminhos que faziam para a montanha, antigamente, os velhos pastores. Só por isso as rendas se apresentam, celebrando a terra e as rendeiras, nesta Exposição.

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